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Freud mostrou em seus trabalhos “Mal-estar na Civilização”, “Moisés e o Monoteísmo” e “Psicologia das Massas”, que, sem um olhar que transcenda a realidade, sem um vôo sobre o real, o Homem cai na agonia, na atomização e no pânico. Perde sua própria humanidade, diz José Castello referindo-se a como Freud insere a Ética no contexto da Psicanálise.
Ética é a doutrina dos costumes, sobretudo na perspectiva das ações. As virtudes éticas são, para Aristóteles, aquelas que se desenvolvem na esfera da vida prática e que são encaminhadas em função de uma finalidade, enquanto as virtudes dianoéticas são as propriamente intelectuais. A primeiras pertencem as virtudes que servem para a realização da ordem da vida de uma sociedade - a justiça, a amizade, o valor e têm sua origem direta nos costumes e nos hábitos, por isso são chamadas virtudes dos hábitos ou tendências. Às segundas pertencem as virtudes fundamentais, aquelas que são os princípios para a Ética . Com o decorrer do tempo, infelizmente, a Ética e a Moral passaram a ser identificadas, por ignorância ou má fé?
A cultura do nosso mundo atual esqueceu-se da Ética. As consequências desse esquecimento ocasionaram costumes sociais carentes de justiça, de amizade, e dos valores relativos ao auto e hétero respeito.
O Estado e a Sociedade Civil brasileira também foi atingida pela banalização da ética e da moral. Em decorrência, muitos brasileiros foram afetados pelo cinismo, delinquência, egoísmo e violência. Acentuou-se o narcisismo. Pela difusão dessas caracterizas, dificilmente poderíamos nos dizer vacinados desses aspectos destrutivos.
Somos cidadãos e profissionais. A ética faz parte de nosso caráter, está presente em todos nossos atos pessoais e sociais, e sobretudo junto aos nossos pacientes com os quais temos uma especial responsabilidade. E pior que tudo, podemos camuflar nossa ética alegando ser parte da técnica analítica.
Relendo nosso código de ética profissional, dos psicólogos, encontramos idéias que valem a pena serem citadas. De fato, é a ética que impede que regras, códigos ou settings sejam non-sense ou sem crítica. É importante então, encontrarmos o sentido e a crítica moral de nossa profissão. Estas necessitam de reflexão e compreensão das singularidades de nossos pacientes. Fazem um apelo à criatividade, à liberdade, e à espontaneidade do analista.
Se por vezes, é penoso respeitarmos a ética e seus princípios na prática do cotidiano, por outro será ela “ que não nos fará perder o sono”. Leva-nos a ter janelas abertas para o mundo, vendo-o como uma realidade sócio-política e comunitária da qual fazemos parte. Transcendemos do indivíduo para o grupo, do momento para a História, de soluções precárias para mais globais e consistentes. A postura ética impede que nos percamos na mesquinhez de olhar o semelhante apenas em favor de nosso imediatismo.
Diz Schiller: “Um espírito nobre não se basta com o Ser livre; precisa pôr em liberdade todo o mais em sua volta, mesmo o inerte” pág. 18. (A Educação estética do Homem).
Refletindo sobre esse pensamento e nessa árdua tarefa proposta por Schiller, ocorreu-me que nós, psicanalistas ou psicólogos, optamos por ela. Ao escolher nossa profissão nos rodeamos de pessoas cujos sofrimentos muitas vezes se ligam ao fato de estarem sucumbidas pela inércia.
A Natureza não trata melhor o Homem do que suas demais obras: ela o põe no mundo deixando-lhe um vasto trabalho para realizar os passos que a natureza iniciou. Transformar as necessidades meramente físicas, em necessidades psíquicas. Nessa tarefa estamos nós, analistas, como parceiros da labuta de nossos pacientes em sua busca de autonomia, libertação e desenvolvimento humano. Este não se realiza sem a aquisição de valores pessoais ou éticos. São transmitidos pelas gerações, encontros culturais, sejam individuais, sejam sociais. Penso também que é inevitável que o analista não transmita ao paciente, sua cultura e seus valores, por mais ética que seja sua neutralidade.
“Sem a cultura não nos diferenciaríamos dos animais, e o Homem se tornaria o mais desprotegido que todos os animais, por não ser um animal cujos passos estão delimitados pelas regras de um impulso espontâneo e alheio à razão”, diz Jurandir Freire.
No trabalho analítico estão inseridas nossas fragilidades e as do paciente. Por este fato, os profissionais de nossa área têm que estar duplamente atentos à sua postura ética. De meu ponto de vista, por mais que o analista evite interferências na vida de um paciente, pela natureza da reciprocidade humana, ele sempre irá interferir na vida do mesmo. O analista conhecendo as fragilidades do paciente, poderá fazer uso das mesmas, para esconder suas próprias inseguranças. Essas conjecturas feitas, penso serem necessárias para refletir as atitudes, condutas e ações, que são mobilizadas em nós, no exercício de nossa profissão.
Porque um paciente nos procura? A que estará ele nos autorizando? Algo de desconforto, físico ou psíquico? Na maioria das vezes, são estas as causas pelas quais o paciente nos procura. Saberá ele disso? Muitas vezes sua noção do processo é por demais vaga, tendo chegado até nós justamente pela alienação de si mesmo, que o faz vir apenas por automatismo, por submissão ou premido por queixas de seus familiares.
Muitas vezes, onipotentes, desavisados ou principiantes entendemos a procura do paciente como um sinal verde para que invadamos sua intimidade, impondo-lhe nossas ditas verdades, relativas à sua vida psíquica ou social. É importante registrar que isto pode ser feito na maior “boa fé”. Não é à toa que muitas pessoas pensam a clínica psicológica como um espaço onde irão “ deixar sua cabeça ser feita por terceiros”.
Mas a recíproca também é verdadeira pois o paciente muito frequentemente nos convida, incitando nosso narcisismo, a fazer sua cabeça, ou dirigir sua vida. Mesmo que camuflado por aspectos de resistência, geralmente este desejo está presente na alma do paciente em sua primeira entrevista.
Sabemos ser este, um desejo infantil, por implicar em perda de autonomia e respeito por si mesmo. Como lidar então com ele? Evitar frustrar o paciente em nome de uma análise que precisa prosseguir? Frustrá-lo além de suas condições possíveis, em nome de uma técnica que não admite concessões e que aponta ser a “frustração necessária ao crescimento mental? ” Penso serem questões relativas ao bom senso e à ética.
A que nos autoriza o paciente, quando nos procura pela primeira vez? Ponto importante para retomarmos sempre, inclusive durante o processo da análise.
Como lidar com um desejo do paciente, quando o mesmo parecer fator impeditivo ao seu crescimento? Saberemos apontar para ele uma divergência e ao mesmo tempo, mantendo-nos coerentes com seus recursos psíquicos atuais? Essa divergência se apontada como autoridade não o levará a distanciar-se e assim nos distanciarmos dele, também? Como lidar com essas situações? Sabemos que não é possível retirar de campo a subjetividade de nossas percepções, mas seremos capazes de não impor a ele nossa leitura do momento?
Por vezes nossa percepção está matizada pelo nosso julgamento valorativo e nossos vieses de moralidade. Como fazer então? Calar não seria concordância? Uma possível incompatibilidade quanto às atitudes e ações de quem nos procura, transparecem desde o primeiro encontro. Percebemos o choque de éticas, valores e de cultura. Caso esta divergência seja acentuada, não seria o mais adequado e ético não aceitar sua demanda?
Sermos
éticos conosco mesmos não consistirá na percepção de que, como humanos, nem
sempre teremos capacidade ou liberdade éticas que sabemos serem as verdadeiras?
Sem esta constatação, surgirá uma culpa consciente ou inconsciente impeditiva
de ajuda ao outro ou nós mesmos. Ao mesmo tempo, a mentira correrá livre em
nossos relacionamentos.
1) O que é ser verdadeiro com nossos pacientes?
Esta questão é fundamental: Como disse Bion, a verdade é o alimento da mente e a mentira seu veneno. Refletindo sobre o que ele pensa “verdade que nutre”, penso que ele se refira à procura de harmonia entre os pares pelo ato de respeito mútuo. Se houver mentira ou algo escondido entre o par analítico, não haverá espaço para a harmonia e para a turbulência mental que fazem parte de nosso trabalho. Haverá a camuflagem de nossas fraquezas, o vazio psíquico.
Não é fácil o caminho da verdade e da transparência com alguns pacientes, principalmente com os mais perturbados mentalmente. Estes nos invadem, nos agridem, nos infestam com suas fantasias persecutórias e paranóicas. No dizer popular “nos deixam loucos”. Ora, o caminho fácil para nos escondermos será a mentira ou a fuga da realidade inventando desculpas, por exemplo.
Quanto mais aumenta nossa experiência vamos descobrindo o seguinte: Quanto mais difícil for o paciente, mais fácil será para nós se conseguirmos ser diretos e transparentes com ele. Olhar olho no olho, experiência essa que talvez ele nunca teve na vida. Obviamente, está presente nessa atitude o respeito às capacidades e condições mentais possíveis do paciente.
A possibilidade de lidarmos com “casos de difícil acesso”, dependerá da formação do analista, do aprofundamento do conhecer a si mesmo, conseguidos na maioria das vezes pela própria análise e pelas supervisões subsequentes. Estas auxiliam a suportar a dor mental da dupla e o uso de defesas adequadas para tanto. Sem dúvida, as condições de manejo mais adequado das situações, possibilitam que nosso trabalho seja menos árduo.
Porém, se as condições mínimas de formação do analista não forem respeitadas, a começar pela sua Ética pessoal, cairemos “numa conversa para boi dormir” ou numa violência interpretativa. Novamente entra em cena o respeito pelo ser humano vivo, sensível e único. Em nosso trabalho este respeito aos pacientes, é ser sensível a sua dor mental e à sua realidade, psíquica, material e factual. Embora de menor importância, questões práticas também interferem no acontecer do ato analítico, como pagamentos, horários e em fim todas as combinações contratuais aceitas e respeitadas por ambos. Nestas, o respeito ético também estará presente.
Como lidar com nossas contratransferências e limitações inerentes ao próprio trabalho?
Nesse contexto, o profissional de nossa área encontra-se bem mais sobrecarregado do que profissionais de outras áreas. O instrumento de trabalho mais significativo é com certeza nossas próprias mentes. Ora, estas são humanas com todas deficiências que as caracterizam. Está a todo momento funcionando junto ao paciente e como tal, não pode ser substituída, ter prazo vencido, sair pelo escanteio, etc.
A ética conosco mesmos não consiste em que não tenhamos limitações, erros, ineficácia. Consiste em procurarmos ter um instrumento com melhor diapasão, para perceber nossos desarranjos. Penso ser impossível para um psicanalista, passar sem sua análise pessoal, sua supervisão, e formação teórica. Além disso, também pela autoanálise, poderá reconhecer seus pontos cegos e sempre que necessário, buscar maior instrumentação de trabalho.
Muitas vezes nessas reflexões podemos verificar que, ou não estamos suficientes aptos para esse trabalho específico ou mesmo que nossa escolha inicial dele não corresponde mais ao nosso desejo. Isto de maneira alguma desqualifica o analista, antes, o enaltece. Nossa função será tanto mais confortável e gratificante, quanto mais estivermos cônscios de nossos desejos e limitações.
Quando se trata de um grupo Institucional, é importante estarmos atentos às transferências geracionais, individuais e grupais presentes no mesmo. Isto é, atentos às “panelas” transferenciais ou não, que por vezes se perpetuam por meio das análises. O elemento transmissor de conhecimentos é sobretudo o analista didata, o qual poderá influenciar de forma diretiva sejam seus analisandos ou supervisionados.
Até onde irá nossa responsabilidade junto aos pacientes? Esta é uma questão ética. Nossa responsabilidade não está além daquela pela qual nossos pacientes nos procuraram, assim como não pode ficar aquém dos aspectos humanos envolvidos na convivência normal entre duas pessoas. Com pacientes psicóticos, crianças, adolescentes e suas respectivas famílias, teremos que ter maleabilidade suficiente para as especificidades de cada caso.
Em face a esse projeto ético exposto como necessário poderíamos nos perguntar: não terá a Psicanálise pequenos e fracos recursos para auxiliar seu profissional? Em minha experiência esses recursos serão fracos ou pequenos quando não vierem da alma afetiva do analista. Como disse Fernando Pessoa, “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena” Por outro lado, não estamos sozinhos como Freud e seus primeiros seguidores. Como instrumento de trabalho temos sobretudo nossa análise pessoal, que é insubstituível, e com na qual somos acompanhados pelos nossos analistas.
Se a condição de analista não nos exigir sermos super-homens ou nascer sabendo, teremos gratificações profundas junto ao nosso trabalho.
Quero destacar uma opinião que foi se formando ao longo dos anos, seja pelas experiências de minha própria análise, seja através de meu trabalho clínico:
Vejamos: Um dos fatores que certamente mais nos ajuda a balizar nossa conduta ética face ao paciente, é ter desenvolvido nossa Escuta psicanalítica. No que consiste essa escuta? Consiste na capacidade de escutarmos o duplo registro do inconsciente e consciente na comunicação verbal e não verbal do paciente.
Esses registros estão sempre em interação com os nossos próprios aspectos conscientes e inconscientes constituindo assim o que chamamos de experiência emocional da dupla, a qual poderá se transformar a cada momento. Se captarmos a experiência emocional presente da dupla, encontraremos dentro de nós, a bússola fundamental do acervo ético de nossas vivencias, a qual poderá guiar e balizar nossos passos. Essa bússola é construída pacientemente, com nossa experiência clínica e com nossa história de vida, passando a ser também fonte nutridora de nossas legítimas gratificações.
Referência Bibliografia :
Freire Costa, Jurandir: in Razões Publicas, Emoções Privadas.
Schiller, Friedrich :A educação estética do Homem. Carta lll Editora Iluminuras, pag 27 e pag 33.