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Trinta e poucos anos se passaram desde que fiz atendimentos em Campinas com adolescentes em liberdade assistida, no COMEC (Centro de Orientação ao Adolescente de Campinas). Lá, no contato com vários adolescentes, em sua maioria usuários de Heroína, a qual era considerada uma das formas de se pegar o vírus da AIDS, ouvi muitos discursos assim: "Não dona, fica tranquila. Isso não pega em mim não."
Neste começo, em torno de 1980, a doença foi tomando forma no mundo e se falava na época de grupo de risco; o tão famoso 3 Hs: Heroína, Hemofílicos e Homossexuais. Não durou muito para que nós, psicólogos, começássemos a ouvir relatos de donas de casa que adquiriram AIDS e só tinham como parceiros seus maridos. Foi então que houve uma mudança de paradigmas, a questão não era mais o grupo de risco e sim os comportamentos de risco. Essas mulheres contraíram o vírus através da relação com seus maridos, que por sua vez, tinham relações extraconjugais. Percebeu-se então que ninguém estava seguro; a segurança estava no uso da camisinha.
Regina, mas todo mundo falando em COVID-19 e você falando em AIDS? Pois é; para a minha tristeza, trinta anos depois, me vejo fazendo a mesma mudança de paradigmas. Começamos a falar do COVID-19 e dos grupos de risco; criança, idosos e pessoas com comorbidades: diabetes, pressão alta etc. Segunda-feira, dia 06 de março de 2020, ouvi o Ministro da Saúde falando que as orientações estavam dadas – isolamento é a solução – que agora dependia somente de que a sociedade compreendesse a importância do isolamento para que o sistema de saúde desse conta dos casos mais graves que surgissem. No dia seguinte, aqui na minha cidade, Fernandópolis, estavam muitas pessoas na rua, como se nada estivesse acontecendo. Fiquei pensando, então, no Comportamento de Risco. Sabemos agora que a morte por COVID-19 não acomete somente os idosos, crianças ou pessoas com comorbidades; existem jovens morrendo pelo mundo a fora. Existem pessoas aparentemente saudáveis, com 40, 50 anos morrendo. E o que recebo de notícia? Quais os comentários dos jovens, pelo menos do interior? Ou mesmo dos idosos? "Aqui no interior não vem essas coisas não!", ou "Eu não pego essas coisas, sou atleta", dizem alguns jovens. "Já vivi bastante, fia. Se eu morrer, não tem importância!". Ou "Isso daí é exagero da televisão. Tem a ver com política.", dizem alguns idosos.
Querem saber o que aconteceu com o jovem do COMEC que me disse que essas coisas não o pegavam? Morreu quatro meses depois de AIDS. Em visita à casa da mãe, em uma favela da periferia de Campinas, ela nos disse: "Graças a Deus que morreu. Imagina passar essa doença para os meus outros filhos?". Na época, não entendi muito bem o sentimento daquela mãe. Hoje, percebo que ela estava apenas tentando preservar seus filhos da doença e da morte; pois quem pegava AIDS na época morria por não haver medicamentos específicos.
Agora também não temos medicamentos para o COVID-19. Percebo atitudes parecidas com pessoas que moram juntas; a que sai para ir ao mercado ou à farmácia, muitas vezes são evitados; parece que estão contaminados, muitos deixam de ser bem-vindos. Pessoas no mercado, caixas de farmácias, limpadores de rua – se olham e se estranham – onde mora o perigo final? Não sabemos. Este é o motivo dos cuidados de higiene e isolamento.
Outro comportamento que me chama a atenção, semelhante ao das pessoas que contraíram o HIV, é o de ter uma necessidade (talvez inconsciente, ou não) de passar o vírus para outras pessoas. Na época, muitas pessoas infectadas, já diagnosticadas, faziam questão de ter relações sexuais com outras pessoas para propositalmente passar o vírus. Esses dias atrás, ouvi falar de uma pessoa aqui da cidade, com COVID-19 confirmado, ter ido ao banco, fazer tudo que precisava na agência, tendo contato com vários funcionários e no final falar: "Se cuidem, porque estou com o COVID-19". Como assim? Que instinto é esse?
Fico pensando. Será que o que prevalece em algumas pessoas é o Instinto de Morte? Será que aquela senhora de 104 anos que sobreviveu à gripe espanhola e ao COVID-19 tem um Instinto de Vida que altera sua imunidade e a protege?
As questões são diversas. As dúvidas são muitas. Antes mesmo desta pandemia, já me preocupava os casos de AIDS aumentando novamente pela conduta dos adolescentes de não quererem usar camisinha na hora da relação sexual. Agora se fala do uso de máscara; já se teve notícia de que talvez ela seja de necessidade contínua durante um longo tempo. Como orientar esta sociedade, que a meu ver apresenta um comportamento adolescente e displicente? Será que a morte de um ente querido trará a noção de realidade? Perder para ganhar? A máscara não é uma vergonha. Não se trata do fato de pensar se fica bonito ou feio. Ela é necessária. O isolamento é necessário. Aceitar essa realidade nos ajuda a enfrentar este momento. Juntos.