Na obra “A Interpretação dos Sonhos” (1900), Freud apresentou os principais conceitos psicanalíticos. É um trabalho essencial para a compreensão e interpretação do mundo psíquico e das relações entre o psiquismo individual e universal. Quando publicada, em 1900, tocou diferentes pessoas, de distintas maneiras, e atraiu para si e para seu autor a atenção de escritores, artistas, psiquiatras, despertando-lhes o interesse pela ciência recém-criada, a Psicanálise.
Os epítetos atribuídos a Freud, de "o pensador de Viena" e "o mestre de Viena", confirmam o reconhecimento da originalidade, profundidade, grandeza de sua obra e da autonomia de seu pensamento.
Entretanto, a originalidade de qualquer pensador pode ser questionada em épocas posteriores, com visões culturais e valores distantes do tempo em que ocorreu a ideia nova. Assim, a originalidade do pensamento freudiano é questionada por Harold Bloom (1994, 1998) – professor de literatura, ensaísta, americano, estudioso de grandes nomes da Cultura e Literatura ocidentais, dentre eles Freud (século XX) e Shakespeare (século XVII).
Bloom notabilizou-se pelos trabalhos de análise e crítica literárias, influenciado pelo método de desconstrução, de Jacques Derrida, por inverter e deslocar a ordem conceitual das coisas. Ao inclinar-se aos estudos comparativos de obras e autores consagrados pela Cultura ocidental, defende uma análise shakespeariana dos escritos de Freud, invertendo, desta feita, a direção da análise freudiana sobre Shakespeare e algumas de suas obras e personagens. Bloom discute Freud como escritor e a Psicanálise como literatura.
Bloom, em “O Cânone Ocidental: Os Livros e a Escola do Tempo” (1994), analisa obras de escritores ocidentais que as classifica de canônicas, imprescindíveis para a formação cultural do homem.
Ali, considera Shakespeare o cânone central, não apenas ocidental, mas universal, pela originalidade literária, abrangência de temas tratados, força de invenção e de raciocínio. Estende a influência e ressonância das obras do dramaturgo inglês ao propor que Shakespeare foi o inventor da Psicanálise e Freud apenas o seu codificador, que a originalidade de Freud desaparece na presença de Shakespeare e, que sem Shakespeare não há “eus” reconhecíveis em “nós” (Bloom, 1994, p. 361 e 47).
Em outra obra, intitulada “Shakespeare, o inventor do humano” (1998), Bloom dedica-se a um minucioso estudo das peças e personagens shakespearianos. Na introdução desses estudos confessa que procurará escrever sobre o autor inglês e não sobre si mesmo, reconhecendo que as peças shakespearianas o leem com muito mais energia do que ele as lê e, aí, parece-me, então, revelar as razões pelas quais afirmara na obra anteriormente citada que é Shakespeare o nosso psicólogo e não seu discípulo Freud (Bloom, 1994, p.21).
Até onde nos é possível compreender a proposta de Bloom, a Psicanálise estaria assentada na obra de Shakespeare, tendo sido daí derivado o sistema de pensamento freudiano e que este representaria outra linguagem do que já fora dito, uma nova organização simbólica, um novo arranjo, uma nova articulação, como se Freud tivesse cifrado, codificado, como que em uma transposição para uma partitura -freudiana- a música shakespeariana. Para Bloom, Shakespeare é o precursor de Freud, e Freud é essencialmente Shakespeare prosificado (p.358).
Freud, na extensão de sua obra, ao investigar e interpretar o psiquismo humano evocou personagens e trechos da dramaturgia shakespeariana, revelou as motivações inconscientes destes personagens, reconheceu e diferenciou conflitos psíquicos, privilegiou alguns personagens como modelos de estruturas neuróticas e apontou algumas relações como modelos de sentimentos edipianos. Entretanto, não se limitou a estas fontes e elegeu, também, modelos literários extraídos de outros grandes autores, desde Homero (século IX a.C.), poeta épico grego, aos seus contemporâneos, à medida que se mostravam pertinentes a esclarecer e confirmar a direção da construção dos conceitos psicanalíticos. Assim o fez em relação a alguns artistas, pintores, escultores e suas obras, especialmente do renascimento italiano. Freud abriu o caminho para a pesquisa da vida psíquica entre as vias da ciência e da arte, imprimindo, também, à sua obra a marca da originalidade, da atemporalidade e da universalidade.
Entretanto, para Bloom, Hamlet é o mentor de Freud (Bloom, 1998). Hamlet, de Shakespeare (1600), serviu também a Freud, de guia para a representação da consciência aflita nos conflitos de natureza neurótica, mas não mais que Édipo Rei, de Sófocles (430 a.C.), redescoberto como modelo de representação do inconsciente e do destino humano. O modelo de Hamlet, usado para confirmar a teoria edipiana, mostra a força da repressão na vida humana; o de Édipo, transformado em paradigma da pré-história do indivíduo e da construção psicossocial do ser humano, é reconhecido como universal e intergeracional (Freud,1900).
Bloom é incisivo ao afirmar que Shakespeare está por toda parte em Freud, muito mais presente quando não é citado (Bloom, 1994, p. 375). Estas afirmações de Bloom levam-nos a considerar que a percepção e a representação da natureza do homem reveladas por meio de múltiplas expressões, com todas as modulações psíquicas que foram fecundamente exploradas por Shakespeare, guardam, em essência, comparável ressonância e magnitude alcançadas por Freud sobre a concepção do psiquismo humano e das relações humanas. Abrangência, força de raciocínio e originalidade não faltaram a Freud que, mais que cientista e escritor, foi um pensador, que ao debruçar-se a investigar o humano pela observação clínica, acabou criando uma ciência que, além de conquistar seu estatuto de cientificidade, é considerada um dos cânones da cultura ocidental.