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Consciência de espécie

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Por OSVALDO LUÍS BARISON

Membro do Grupo de Estudos de Psicanálise de São José do Rio Preto e Região

"(…) E aquilo que nesse momento se revelará aos povos Surpreenderá a todos não por ser exótico Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto Quando terá sido o óbvio (...)"

(Um índio, Caetano Veloso)


Desde os movimentos da chamada globalização no início dos anos de 1980, uma nova e fundamental perspectiva insinuou-se por entre essa nova fase do capitalismo. Desta feita, com as economias interligadas e a interdependência entre todos os agentes da cadeia produtiva, as noções de raças, cor de pele, nações, religiões, estados, países, continentes, regiões, culturas, orientações políticas etc., perderam o sentido como algo que realmente nos diferenciam.


Foi-se imiscuindo por entre as percepções e as análises a realização de que somos todos indivíduos de uma mesma espécie. Uma constatação tão elementar como esta ficou no decorrer da história subjugada por aquilo que Freud denominou como sendo “o narcisismo das pequenas diferenças”. Sob a estúpida ideia de que a cor da pele determina algum critério de dominação de uns sobre os outros, ficamos autorizados a escravizar e outros a aceitarem isso como critério de naturalidade.


O mesmo acontece entre os países. Alguns têm regimes mais ricos ou fortes e se sentem no direito de interferir e dominar outros povos. Mesmo no interior de uma mesma cultura e país, há o direito inexplicável de um gênero se achar superior ao outro. Dentro de um critério formulado por ele mesmo, o homem acha que tem na mulher um objeto de sua posse e que esta lhe deve servir e submeter-se. Na atualidade, há ainda a incrível divisão entre direita e esquerda, fator que nos mantém afastados e em conflitos constantes.


A atual pandemia causada pelo Covid-19 traz nova chance de percebemos que nossa luta não é entre nós, mas é luta entre espécies. Assim como somos agressivos com as demais espécies, submetendo-as, matando-as para nos alimentarmos, o vírus também necessita sobreviver e encontrou nos humanos uma ótima colônia. Parecem ter predileção pelos nossos pulmões. Estão cumprindo os desígnios da vida, que sempre luta para se perpetuar. Cabe a nós nos protegermos e tirarmos algum ensinamento da ameaça.


Nós humanos, arrogantemente, fizemos uma classificação e nos pusemos no topo da evolução das espécies. Ledo engano, somos apenas mais uma entre todas. Revelado agora que somos até bem vulneráveis, pois outra, microscópica, está nos deixando de joelhos e apavorados.


Claro está que o mundo que conhecíamos já não existe mais. Por melhor que seja a resposta que iremos encontrar, profundas modificações deverão existir. Não tenho dúvidas da capacidade humana em encontrar alternativas. Somos extremamente adaptáveis e criativos para buscarmos curas, vacinas, reorganizações sociais e econômicas, garantindo a continuidade da humanidade. O que seria o pior cenário é não conseguirmos, enquanto cultura, aprender nada com esta catástrofe.


Não podemos menosprezar o poder da estupidez e ignorância. Muitos querem as respostas fáceis e rápidas, baseadas na atribuição de poder para uns poucos que nos redimissem e prometessem “a volta à normalidade”.


É impossível negar a nossa característica voraz e, consequentemente, destrutiva. A relação de mando, arrogância e submissão da natureza e das demais espécies ao nosso bel prazer, precisa ser questionada e modificada. Transformamos o viver em algo antiecológico exatamente pela necessidade de acumulação, sem levarmos em conta que os recursos são limitados e que faltará para nossos filhos no futuro próximo.


As respostas não serão dadas por este ou aquele “iluminado” que apresentará soluções. Estas respostas deverão ser construídas de maneira coletiva, pois, inclusive, a coletivização das ações será, por si só, indicativa de nova postura. Acredito que necessitamos realizar que se torna insustentável o acúmulo de bens nas mãos de poucos. É inadmissível que mais da metade da população mundial têm acesso apenas ao que é necessário para a sobrevivência, sendo esta em condições precárias e aviltantes. Produzimos muito mais riquezas do que necessitamos, no entanto, poucos têm acesso a elas.


Temos sido avisados de que algo violento estaria para acontecer. Mas ignoramos os sinais da AIDS, Ebola, H1N1, Sars, superbactérias etc. Nossa arrogância e adoração ao deus “mercado” tem nos cegado para percebermos o que é óbvio. Precisamos urgentemente reformular o pacto social e civilizatório, realizando a elementar noção de que somos todos pertencentes a uma única espécie e precisamos de cada indivíduo saudável e protegido. Caso contrário, perderemos para um inimigo que nem sequer veremos seus corpos, sendo que muitos padecerão implorando apenas por um pouco de ar. Ar este que, em nome da produção, preferimos transformá-lo em não respirável. Os avisos estão sendo dados.


Para terminar, uma piada que gosto muito de pelo caráter ilustrativo:


Conta a estória que em certa região vivia um homem muito bom, correto, cumpridor de seus deveres e muito obediente à sua religião. Certo dia, começou uma chuva muito forte e o rádio avisou que havia o risco iminente de haver inundação. Nosso bom homem colocou-se de joelhos e com toda a força de sua fé iniciou orações pedindo proteção. Ele acreditava ter muito poder na sua relação com o seu deus. Tempos depois, apareceu a polícia na frente da casa, avisando que o rio iria inundar e todos deveriam desocupar a região. Humildemente, nosso crente disse que não precisavam se preocupar com ele, que cuidassem dos demais, ele estava protegido. Os policiais se dirigiram para as casas dos vizinhos e ele voltou a orar. A água estava entrando pela casa e já atingia os joelhos quando os bombeiros apareceram em um bote salva-vidas chamando para que ele abandonasse a casa e viesse com eles. O obstinado rezador dispensou a ajuda e voltou às orações. Teve que subir no telhado, pois a água encobria todo o vilarejo. Do alto de sua casa, ainda em oração, o fiel religioso continuava sua reza, cada vez mais entregue e fervoroso. Foi quando viu o helicóptero da marinha aparecer com o cesto de resgate. Mais uma vez, dispensou a ajuda, dizendo que estava protegido pelo seu deus. Os marinheiros foram embora, salvar outros.


O crente morreu afogado e, quando chegou ao céu, com muita irritação, foi logo dizendo: não aceito conversar com ninguém, só falo diretamente com o meu deus. Os anjos que por lá estavam, recebendo os recém-mortos, foram explicar ao deus-chefe quem era o novo morador, apontando todo o serviço prestado por ele quando vivo na Terra. Deus chamou-o ao seu gabinete. Entrou indignado, relembrando que sempre seguiu os mandamentos, nunca havia feito nada que o desabonasse, sempre fora caridoso, honesto, fiel e religioso. Quando precisou de ajuda, o seu deus o havia abandonado. Deus o interrompeu e disse: mas o que você queria, ouvi sim suas preces. Enviei o sinal de rádio, a polícia, os bombeiros e até os marinheiros. Como você não aceitou nenhuma ajuda eu pensei que queria mesmo era morrer.


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